Memórias fazem arte, Matheus Crespo!
É final de tarde, começo de noite de um sábado imensamente quente de dezembro, trombetas do Apocalipse alardeando como será esse verão na planície, Mas Matheus Crespo tem uma esfera de paciência e deslocamento própria dos artistas imersos em viver arte e esta esfera concede a ele a capacidade de simplesmente não se deixar afetar por filigranas como o calor de mil megatons desse dia. Noto isso logo que chego em seu ateliê, para conhecer melhor o seu trabalho e começar a entender o que o faz ser um artista visual. E olha que essa seria nossa primeira conversa.
Recebido com um largo sorriso e um abraço de amigo de infância, logo fui levado a ver algumas das obras dele em exposição no ateliê. São produções que representam raízes, interseções, rizomas, interações, junções e dispersões carimbadas e pintadas. Na aparente simplicidade, há algo muito mais complexo que não podemos nos dar o luxo de deixar escapar. Há ali a representação de memórias, de pontos de partida em que cabem aberturas e conduções para interpretações variadas. E memória, como concepção artística, é algo que sempre me interessou muito.
Comento com ele essa possível interpretação do que vi e ele logo mostra uma série de trabalhos onde combina estruturas de raízes, sistemas nervosos e rizomas à ilustrações de circuitos elétricos retirados de livros de eletrotécnica que seu pai usava quando era estudante. Pronto! Havíamos acabado de estabelecer um vínculo, um ponto de partida para poder aprofundar a conversa – e agora eu acabo “revelando” um dos mais antigos truques que os jornalistas usam quando realmente querem fazer entrevistas. Mas eu já havia levantado essa bola antes mesmo de ter chegado ao ateliê.
Ao olhar as redes sociais de Matheus Crespo, uma foto dele em frente a uma grande folha de mangueira pintada em tecido – sim, é essa que ilustra a coluna, você percebeu! – deixava escancarada essa abordagem. Nesse post, o artista fala sobre a memória afetiva criada sob esta árvore plantada pelo avô no quintal da casa dos pais de Matheus. “Trago para meu fazer artístico tudo o que eu vi, vivi e fiz parte enquanto eu crescia. Tudo isso me fez ver o que eu sou, como ser humano e como artista. Não há como não colocar isso no que eu faço. Eu não saberia fazer de outro jeito”, diz Matheus, depois de um longo suspiro, cabeça carregada de lembranças enquanto diz cada uma dessas palavras.
Toda essa conversa me fez lembrar de uma entrevista que uma amiga jornalista fez com o poeta Manoel de Barros, no começo dos anos 2000. Ela me contou que, lá pelas tantas, ele havia dito algo como “a memória do passarinho é ninho”. Achei pertinente essa imagem a respeito do pensar e produzir artisticamente de Matheus Crespo.
E essa ideia de ninho é forte também, porque o ateliê está aberto para exposições, ocupações e mentorias artísticas. Quase chegando ao final, nossa primeira conversa acaba focada nesse último ponto, com Matheus abrindo várias gavetas de um grande móvel para mostrar e comentar desenhos de artistas que participam desta atividade. Noto que a maior parte aborda pontos sociais, econômicos e políticos ligados à questões raciais. “Não dava para ser diferente. É a percepção do cotidiano, do que precisa ser exposto. É visão e construção de identidade, não é? A arte precisa contar com isso, ganha força quando isso acontece”, diz o artista, meio que sabendo que não precisa convencer o interlocutor aqui a respeito disso.
Saí do ateliê com essa fala na cabeça. Foi uma das primeiras que me lembrei quando comecei a escrever essa coluna. E foi o que orientou como eu precisava escrevê-la. Obrigado, Matheus, pela conversa. Precisamos marcar as próximas.
