COLUNA | Nós somos a Mutável Saralho Band
Por Jorge Rocha
Quando eu era adolescente, era bacana, descolado, cool – como se diz isso em tiktokês? – ter uma banda. Ouvi muito a frase “eu tenho banda”. Atravessei essa fase na contramão e fui “ter uma banda” somente em 2003 quando, imerso e encharcado de literatura, fundei a Mutável Saralho Band com o baixista Alexandro Chagas Florentino, o Alexandro F. Ainda na contramão, a Mutável não era uma “banda de rock”, mas um grupo que mudava de formação para apresentar, em saraus, leituras musicadas de autores de Campos e região “surgidos” no começo dos anos 2000. De lá até aqui, a Mutável teve várias encarnações e andou para um lado e para outro, até voltar para Campos.
Aqui, com outra formação – fiel ao seu nome de batismo -, a Mutável criou e apresentou o espetáculo “Minhas memórias foram demolidas”, no Teatro Firjan SESI Campos. Isso agora, em agosto, fazendo parte do Edital Mosaico Firjan, Categoria Multilinguagem.
Mas não vim aqui para contar a história da Mutável Saralho Band. Na verdade, vim sim – hah, pegadinha do Mallandro! -, só que de uma maneira diferente. Não quero falar sobre o que é banda, mas sim sobre quem é que a faz viver agora. Vim para falar sobre esses profissionais que não pouparam nada de suas cargas artísticas para moldar essa encarnação da Mutável e o espetáculo que criamos.
Começo pela Marcelle Louback, que chamo de “minha parceira criativa”, cheio de orgulho. Uma das mulheres mais inteligentes que eu conheço – precisei aprender muito até me sentir capaz de propor essa parceria para ela. Ela é escritora de formação e prática híbrida, pesquisadora em escritas performáticas e criadora de peças que misturam texto, voz e objeto. Já ocupou salas de exposição e saraus, idealizou coletivos e exposições locais e produziu leituras dramatizadas que transformam página em presença. Em cena, opera com risco estético e técnica, sabendo perfeitamente até onde é possível empurrar a linguagem sem perder o fio narrativo. Escrevi com ela o conto que fecha o “Minhas memórias”; para um escritor, não há maior mostra de confiança do que compor um texto com um par.
Depois vem o Gabriel Araújo, que esteve em uma encarnação da Mutável mezzo campista, mezzo carioca, em 2006, em uma apresentação no Rio de Janeiro. Fui reencontrá-lo apenas em 2024, durante uma apresentação dele na Festa Literária do Santa Paciência (FLISP). Não demorou muito para chamá-lo para mais essa encarnação: respeito muito o acaso e o caos. Ele trabalha como compositor, educador e produtor musical com trânsito entre a experimentação sonora e a canção visceral; acompanhou e produziu artistas de porte regional e nacional, compôs e apresentou repertórios em salas de concerto e espaços independentes, e assina trilhas para curtas e longas – trabalhos premiados que lhe deram selo de artesão de atmosferas. Vai de Stockhausen a Dee Dee Ramone – com direito a gritar “one, two, three, four” – em tempo recorde. Com tudo isso, criou arquiteturas sonoras que meus contos e de Marcelle usaram tanto como bunker quanto como casa de praia.
Mas estava faltando algo que realmente fizesse a diferença. A Mutável tem feito, há 20 e poucos anos, esse mix de vários gêneros literários e musicais, mas nunca havia se aventurado a trazer algo audiovisual para essa sopa primordial. Chamada pelo Gabriel, chegou logo a Sofia Arantes, videomaker semi silenciosa de cabeça efervescente. Sofia é artista audiovisual e montadora com trânsito por curadorias, festivais e circuitos experimentais; atua como VJ em shows multilinguagem, monta documentários e performa imagens em tempo real, além de produzir e coordenar projetos de exibição comunitária. Sua prática cruza montagem, pesquisa de gênero e manipulação de imagem-tempo. Ela teve a missão mais difícil de todas: costurar toda a sobrecarga de referências que jogamos em cima dela para criar a cobertura perfeita que mostrasse exatamente o que pensamos quando escrevemos cada um dos contos deste espetáculo. Mas quando vi o resultado, a única ideia que orbitava minha cabeça era um imenso “é ISSO!”.
Depois dessa ficha corrida, tudo que posso fazer é olhar para a câmera imaginária que fica aqui na minha lateral esquerda e, quebrando a quarta parede, dizer: “Eu tenho banda. E ela se chama Mutável Saralho Band!”
